sábado, novembro 25, 2006

Álvaro Cunhal



Cunhal foi uma das figuras mais marcantes do século XX português e teve uma grande influência, mesmo internacional. Pense-se o que se pensar das suas ideias e da acção política, não é possível fazer a história do nosso tempo sem ter em conta a sua poderosa personalidade e intervenção, quer durante os longos anos da ditadura, quer no 25 de Abril e nas décadas que se lhe seguiram.Comunista desde a juventude, homem de coragem e capacidade de resistência lendárias, manteve-se até ao fim fiel a si mesmo e ideais de sempre. A sua vida confunde-se com a do movimento comunista no século XX e está indissociavelmente ligada à história da URSS, cujo fim ele viveu como uma tragédia. Contudo, este acontecimento não mudou nem as suas convicções, nem a tenacidade que punha na respectiva defesa.A sua resistência ao regime de Salazar e de Caetano, sob o qual foi preso, torturado e perseguido, tornou-se mítica pela ousadia, pela constância e pela coragem. Reorganizou o PCP, tornando-o uma força activa, embora clandestina, de combate político organizado e eficaz. O Secretário-Geral dirigia, agia, escrevia, resistia, estivesse onde estivesse, dentro ou fora de Portugal. Para todos os oposicionistas, mesmo que, como era o meu caso, nunca tivessem sido comunistas, a sua aura era enorme.Tinha uma personalidade vigorosa e era um homem de múltiplos talentos politico, escritor, desenhador, pintor, tradutor. No contacto pessoal era capaz de ser muito difícil, inflexível e duro, mas também gentil, sensível e atencioso, capaz de gestos de grande elegância e cortesia. Fascinou tanto apoiantes como adversários e a reserva que manteve, durante muito tempo sobre a sua vida privada e as facetas mais íntimas da sua personalidade contribuíram para o mitificar. Com a chegada da velhice e o aproximar do fim, decidiu dar-se a conhecer melhor, falando da sua vida pessoal e da sua obra de criação literária e artística. Fazia-o com um indisfarçável orgulho, como quem desvenda um segredo demasiado tempo guardado e que lhe era finalmente grato partilhar. Assumiu para a posteridade a autoria dos seus livros publicados sob pseudónimo, autorizou com prazer que deles fizessem filmes, editou os seus desenhos e a sua pintura. Publicou a sua tradução do Rei Lear de Shakespeare. Em conferências e entrevistas, falou da vida e da arte, contou histórias e reflectiu sobre a sua experiência. Percebia-se que queria, de algum modo, fixar a imagem com que o futuro o olharia.Conheci relativamente bem o Dr. Álvaro Cunhal, pois tive vários contactos e longas reuniões com ele, antes e depois do 25 de Abril. Lembro a reunião, particularmente relevante, que decorreu nos arredores de Paris e que o António Lopes Cardoso organizara. Nela falámos de tudo, da situação nacional e internacional, e também da necessidade de dar à Oposição novas frentes de combate perante um Regime Autoritário que se eternizava. Para situar esta reunião clandestina, devo dizer que quando finalmente chegámos a Paris soubemos, pela imprensa francesa, que Salazar tinha sofrido um grave acidente.Apesar das profundas diferenças que existiam entre nós, foi possível, nalguns casos, chegar-se a um entendimento prático, como aconteceu na concretização da coligação PS/PCP, que acabaria por ganhar a Câmara de Lisboa e que eu encabecei. A recordação que conservo desses encontros é a de um homem muito bem preparado, minucioso e atento, que tomava notas num caderno que guardava na sua inseparável pequena pasta. Claro no que queria, tinha porém uma percepção muito aguda da relação de forças. Confesso que negociar com ele era duro, mas dava prazer. Tinha, além disso, um sentido de humor que não raro atingia o sarcasmo.A História avaliará a acção de Álvaro Cunhal, que, como é inevitável, teve luzes e sombras. Como Presidente da República, cumpre-me, na hora do seu falecimento, honrar a sua memória, apresentando as minhas sentidas condolências à sua família e ao Partido Comunista Português.

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